Interessado nas origens da religião órfica, me deparei com este trabalho impecável da professora de história grega Louise Bruit Zaidman, Os gregos e seus deuses (2010). Na minha opinião um dos melhores sobre religiosidade grega.
Nesta obra, a autora não se limita a estudar a religião grega como um sistema organizado de divindades, descrito como um panteão separado da vida dos homens. Em vez disso, ela opta por explorar a vivência religiosa como uma experiência que permeia a vida dos indivíduos em suas diversas etapas. Essa abordagem é particularmente relevante, pois nos impede de entender a “religião grega” — termo que exige aspas — da mesma forma que concebemos a religião nos dias de hoje. É fundamental reconhecer que a ideia de religião como um campo separado e único dentro da realidade social ocidental é uma construção moderna, como apontam estudiosos como Jonathan Z. Smith (Imagining Religion: From Babylon to Jonestown, 1988) e Brent Nongbri (Before Religion: A History of a Modern Concept, 2015). Assim, ao falarmos de “religião grega”, precisamos contextualizá-la adequadamente. A proposta da autora é justamente investigar, nas fontes gregas, como os gregos vivenciavam o que chamamos de experiência religiosa.
No início da obra, é evidenciado como a religião está intrinsecamente ligada a todas as etapas da integração do indivíduo na coletividade, seja na família, nas fratrias, nos demos, ou em outras estruturas sociais e políticas, todas elas profundamente impregnadas de rituais e práticas religiosas.
Essa formação religiosa se baseia em representações compartilhadas dentro da comunidade e molda, de forma gradual, a consciência do indivíduo em relação ao seu pertencimento a uma coletividade também definida por seus deuses. Fora dos limites da cidade, outros deuses, ou até os mesmos deuses sob diferentes formas, esperam receber as honras dos humanos por meio de sacrifícios e festividades.
Ao longo da obra, a autora também traça a evolução das concepções que os gregos tinham sobre a morte e o pós-morte. Diversas crenças coexistiram durante longos períodos, desde a visão órfica de um ciclo de reencarnações até a crença na imortalidade da alma, que foi fortemente defendida por Platão, embora restrita a certos círculos.
A obra é intitulada "Os Gregos e seus Deuses" porque o politeísmo é uma característica central da religião grega. Os deuses, com suas representações antropomórficas, são próximos aos humanos, mas permanecem inacessíveis, exceto por meio da mediação dos cultos. Esses deuses, retratados com corpos e rostos humanos, embora possam assumir outras formas, habitam as cidades dos homens: seus templos são as moradas de suas imagens, estátuas que se tornam impregnadas de poder durante as cerimônias dedicadas a eles. Os rituais e procedimentos do culto existem justamente para regularizar as relações entre os homens e os deuses, estabelecendo formas convencionadas de interação com o divino.
A obra oferece uma análise das diversas práticas que moldam a consciência religiosa dos gregos e das representações mentais que as sustentam, mostrando que as práticas religiosas são inseparáveis de suas representações simbólicas.
Segundo a autora, nossa compreensão da religiosidade grega é limitada ao que chegou até nós em forma escrita: histórias e relatos transmitidos pelas mães e nutrizes na infância, intercalados por cantos e hinos, ouvidos e ensinados durante reuniões familiares e grandes festividades coletivas, desde as recitações homéricas até as representações teatrais. Para reconstruir a experiência religiosa dos gregos, a autora propõe uma análise das práticas e representações documentadas em diversas fontes, desde as leis sagradas — que especificam, em contextos bem definidos, as condições materiais dos cultos, como oferendas, ocasiões, dedicantes, rituais e divindades — até os textos literários.
É importante destacar que a autora deixa claro que sua pesquisa se baseia principalmente em fontes textuais, optando por deixar de lado as evidências arqueológicas. No entanto, para aqueles que, como eu, se interessam pelas representações da religiosidade grega presentes nos textos homéricos, nas tragédias e na literatura preservada da época, a ausência de uma abordagem arqueológica não diminui a profundidade e a riqueza da pesquisa realizada pela autora.