BIOGRAFIA E CONTEXTO HISTÓRICO
Jan Amos Komenský (1592-1670) nasceu numa pequena cidade em Nivnice (Morávia) chamada Uherský Brod (GASPARIN, 2011 p.18). Ainda muito cedo, com doze anos, acabou órfão e ficou sob os cuidados de uma tia. Nessa época passou a frequentar a escola elementar da União dos irmãos Boêmios. A Unitas Fratrum, ou seja, a União dos irmãos, era uma igreja baseada nos ensinamentos do reformador boêmio Jan Huss (1369-1415). Desde o início de sua formação filosófica e acadêmica, Comênio dedicava grande parte de sua produção intelectual a reflexões sobre educação. Ao longo de sua vida, suas preocupações com práticas educativas e com métodos de ensino foram constantes.
O pensamento de Comênio, pode-se dizer é marcado pelo exílio. Sua vivência em meio a conflitos religiosos e perseguições fora conturbada e propensa ao fracasso para qualquer tipo de vida intelectual. No entanto, apesar de todas tribulações e perdas que marcaram sua vida, Comênio acumulou uma considerável produção intelectual.
Alguns fatos de sua biografia, que em certo sentido, contextualizam sua obra são importantes de serem apresentados para que se tenha uma ideia da importância de sua produção no momento histórico em que viveu.
Primeiramente, em relação a essa noção de exílio, vale destacar que Comênio viveu no contexto de Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), considerada por muitos historiadores a pior guerra até então. Segundo Henrique Carneiro (2006) o conflito que se revelou uma verdadeira catástrofe, vitimou um número enorme de vidas que hoje dificilmente pode ser estimado com precisão. O século de Comênio foi marcado por guerras, pestes e colapsos monetários. As disputas religiosas deflagradas pela reforma e pela contrarreforma contribuíram para que o século XVII fosse marcado pela violência, um século inglorioso localizado entre os sonhos do Renascimento e as esperanças iluministas.
A famigerada Guerra dos Trinta Anos foi a última guerra numa sequência de conflitos religiosos que marcaram as divergências entre católicos e protestantes logo após Martinho Lutero dar início a um movimento reformador. Em linhas gerais envolveu dois blocos principais de países: por um lado estavam os católicos liderados pela dinastia Habsburgo do rei Fernando, imperador do Sacro Império Romano Germânico, as regiões católicas da Alemanha e a Espanha de Felipe III. Por outro lado, estavam os rebeldes protestantes da Boêmia de das regiões germânicas sob a liderança do Palatinado de Frederico V, que contavam com diversas outras nações, inclusive a França católica que visava neutralizar o poderio espanhol e austríaco. O pragmatismo francês demonstra que a Guerra dos Trinta anos não se limitava a questões unicamente religiosas, mas envolvia problemas políticos relacionados a questões dinásticas, além de diversas revoltas camponesas.
A Guerra pode ser dividida em cinco fases que compreendem: (1ª) da Boêmia (1618-1621), (2ª) do Palatinado (1621-1624), (3ª) dinamarquesa (1625-1630), (4ª) sueca (1630-1634) e (5ª) francesa (1634-1648), sendo que em todas elas cada um desses países enfrentou a força coligada do poder católico espanhol e do Império Germânico (CARNEIRO, 2015).
A principal batalha que marcou a primeira fase da Guerra, aquela que diz respeito à região da Boêmia, foi a chamada Batalha da Montanha Branca. No episódio, a liga católica impôs uma destrutiva derrota aos exércitos rebeldes protestantes em 8 de novembro de 1620. Frederico V, o Palatino é derrotado e com isso a Espanha e o Império começam a exercer um governo de perseguição contra os protestantes. Na cidade de Praga, o representante dos Habsburgos espanhóis expulsa o clero ultraquista (hussitas). Além das perseguições, a região sofria com a peste, e em 1621 Comênio perde sua esposa e dois filhos para a doença.
Nesta época tem início a vida de exílio físico e espiritual do educador. Em 1622 ele inicia suas obras “consolatórias”, e em 1623 conclui uma de suas mais importantes obras, “O Labirinto do Mundo e o Paraíso do Coração”. Comênio junto a seus irmãos da União dos Irmãos, começam a vaguear a procura de uma nova sede para o grupo. Uma peregrinação de exílio devido às perseguições constantes. Na Boêmia, o catolicismo torna-se religião oficial e resta aos irmãos encontrar um refúgio. As pessoas que no reino da Boêmia não se converterem à religião oficial devem deixar o país. Comênio fica responsável por organizar o exílio de seus irmãos.
Em 1628, os irmãos deixam a Boêmia e se refugiam em Leszno, na Polônia. Ali, Comênio desenvolve suas ideias didáticas e interessa-se pelo ensino de línguas. Quatro anos depois é consagrado sênior da União dos Irmãos boêmios e morávios com a responsabilidade de orientar e organizar os estudos dos alunos de teologia.
Entre 1633 e 1637, Comênio reestrutura a escola de Leszno e inicia a tradução da didática tcheca para o Latim. Reorganiza o ginásio de Leszno e torna-se reitor da instituição. Durante estes anos, Comênio aprofunda seus estudos pansóficos. O pansofismo é a base de sua concepção pedagógica que se expressa na ideia de que é possível ensinar tudo e a todos, ou seja, a noção primeva de educação universal.
Comênio viaja pela Europa, divulgando suas ideias pansóficas e desenvolvendo suas reflexões sobre educação. Em Endegeest, Países Baixos, conhece René Descartes e em Bremen, na Alemanha é convidado para realizar uma reforma das escolas.
Em 1656, nobres poloneses católicos atacam a cidade e incendeiam Leszno, a tipografia e todos os arquivos da União dos Irmãos é destruída, inclusive a biblioteca particular de Comênio. Novamente os irmãos estão em exílio e grande parte deles se espalham pela Silésia. No ano seguinte sua Opera Didactica Omnia é publicada.
Após uma vida de exílio e perseguições, Comênio morre em 1670 com uma produção intelectual impressionante. Até o fim de sua vida continuou a escrever e publicar.
Comênio viveu uma época em que os grupos hussitas na Boêmia almejavam uma liberdade religiosa. Essa liberdade religiosa vinha conjugada a um forte desejo nacionalista de renascimento cultural que perpassava não apenas elementos religiosos, mas também aqueles mais comuns de construção nacional como a Língua. Segundo Alvori Ahlert (2002, p.45):
A língua simbolizava os elementos da religião, da cultura, da política, da unidade e da autonomia da razão. Esta comunidade fraterna alavancou uma espiritualidade mais piedosa, acentuando o estudo das Sagradas Escrituras para que fossem o parâmetro da organização social e religiosa.
É neste sentido que Comenius não só se interessou pela reforma educacional da Boêmia como também na formulação de uma gramática Tcheca. O nacionalismo e a religião estavam intrinsecamente ligados aos anseios de construção nacional.
Resultado de seu trabalho de tradução latina de sua Didática Tcheca de 1628, a Didática Magna, que deriva de sua Opera Didactica Omnia, representa uma mudança de perspectiva do pensamento de Comênio. É importante mencionar que apesar das diferentes mudanças políticas e cenários conflituosos, a religiosidade e a espiritualidade de Comênio permanecem como um eixo da Didática. A Didática Tcheca limitada pelas questões locais de construção nacional acabara por abarcar em sua versão final, ou seja, a Didática Magna, uma dimensão universal que abrangia os princípios pansóficos do educador. A experiência exilar, a nosso ver, foi um importante passo em direção a uma desterritorialização das questões educacionais de Comênio e seu pansofismo foi a base dessa transição do local para o universal.
A aproximação com a obra de Comênio fundamenta-se por diferentes razões para diferentes autores. Há grupos que se interessam pela obra do educador e que enfatizam principalmente os aspectos místicos de sua obra e valorizam a dimensão espiritual dos escritos de Comênio. Também há autores que buscam relacionar a obra do educador à uma contraposição de tendências atuais referentes a uma estrita observância aos conteúdos que se traduz muitas vezes em engessamento, burocracia e limitação da criatividade. É neste último espectro de reflexões sobre a obra do educador que o presente livro está relacionado.
É importante salientar, como já foi mencionado, que a produção intelectual de Comênio está inserida num contexto de disputas e guerras religiosas. O século XVII está envolto sob a sombra das disputas entre reformadores protestantes e contra reformistas católicos. Portanto, a separação entre política e religião não era algo tão evidente e desejável em muitos aspectos. Sendo assim, a tentativa de se separar o pensamento religioso de Comênio e de certa forma secularizar suas ideias contextualizando-as à noção de um ensino público laico é um exercício interessante e desafiador, mas que no fim pode ajudar a compreender as ideias deste educador e fornecer uma importante base de reflexão para pensarmos diferentes temas que perpassam a educação contemporânea.